Antes de
continuar com este trabalho heterodoxo com o marxismo
devo falar um pouco sobre a dialética,resumindo,pelo menos
as minhas convicções diante das
discussões dos últimos 100 anos,convicções que eu
acho que devem ser comuns a todos
que têm bom-senso.
O que ficou
para o militante de esquerda tradicional da concepção dialética foi herdada do “ Anti-Durinhg” de
Engels,na passagem do século XIX
para o XX.Esta visão ficou
ainda mais “ firme” quando do surgimento do marxismo
soviético,suposto guardião da ortodoxia.
Pela concepção de Engels, a
natureza(e a sociedade)são
governadas pelo movimento
dialético,que estruturaria de modo rígido
estes
dois campos.Tem a famosa
história da vaquinha que come o
mato,defeca e o cocô
unido à terra geraria a flor que
comida por outra
vaquinha daria continuidade ao movimento.
Este seria o
esquema geral da
dialética A=não-B>síntese,quer dizer
o mato como negação da vaquinha
se transforma na síntese ,o cocô,o qual negado pela
terra se transforma em flor
e assim por diante.
Gerações de marxistas defenderam esta idéia
contra a visão de David Hume,segundo a
qual as leis são hábitos
da subjetividade,afirmação que
serviu de base ao pensamento crítico
de Kant.O fato de a
luz do sol
bater na água não significa ,de
pronto,que haverá evaporação,mas se as condições forem
favoráveis para isso,sim.
A natureza não
é,segundo Hume,” armadinha”,estruturadinha,mas probabilística
,o que foi confirmado no século XX,com o
princípio da indeterminação de Heisenberg.A
certeza não é absoluta.
Todos nos
lembramos das discutíveis
afirmações de Lênin no “ Materialismo e Empirocriticismo”,contra Hume e
Kant,mas a verdade é que também a
dialética é probabilística,indeterminada.
O esquema supracitado
de Engels não
é perfeito,nem universal,mas
localizado,particular.Se a vaca
defeca em outro lugar,numa
rocha ,por exemplo,o resultado,a síntese,vai ser outra.Mas vão me
contestar,haverá uma outra
síntese,e o movimento geral e universal continua.Absolutamente.
O esquema de Engels serve
para um movimento continuo biológico localizado em determinadas condições,mas ele não é
base universal de explicação da natureza
e da sociedade.
Esta visão remonta ao
jusnaturalismo,à concepção de um
Deus racional,que estrutura a natureza e a sociedade.Para o
jusnaturalismo,as leis naturais
seriam um padrão transcendente,transepocal:comer,fazer sexo,querer sobreviver,mas estas leis
também são localizadas,condicionadas,podendo não ocorrer ou de forma
diferente(principalmente o item sexual).O Jusnaturalismo de São Tomás de Aquino,por
exemplo,consagrava que na natureza só existia o sexo entre
elemento fecundante e
fecundado,mas na Idade Média,em que
ele vivia,não se conhecia a partenogênese,o hermafroditismo.Hoje se
sabe que as
circunstâncias da evolução impuseram
o sexo,mas se as circunstâncias fossem outras, a partenogênese poderia predominar.
Mesmo o jusnatualismo é
mais que questionável e o modelo natural
para a sociedade mais
ainda.Uma vez Gramsci
afirmou que Marx(e
Engels)possuíam “
incrustações positivistas”,mas eu
digo que
,por este pensamento de Engels,por este esquema
dialético,tanto o positivismo de Comte
como o pensamento marxista
são formas de cientificismo do século
XIX,por colocarem este modelo
natural sobre a sociedade.Assim o comportamento
desviante(anti-científico[anti-natural])seria
aquele que transgrediria o que está na natureza.Todas as perversões viriam desta transgressão.
Com o crescimento das
disciplinas sociais no século XX,a partir de
Freud,ficou cada vez mais claro que as “ leis “
sociais são diferentes
das naturais,porque autônomas,subjetivas,guardando uma
variabilidade que não condizia com a
concepção da natureza.Digo não
condizia porque a natureza
,como vimos , é probabilística e
as suas “ leis”
não são rígidas,universais ou
imutáveis como pensavam os grandes pensadores,do século XVI(ciência
moderna)até o XIX.
Quando Sartre
afirma ,em sua “ Crítica da Razão
Dialética”,que a dialética
é produto da consciência ,do pensamento,da subjetividade, está consagrando estas verdades.
Engels,ao expor em sua
“ Dialética da Natureza” ou no citado “Anti-Duhring”,as leis
do movimento dialético não se deu
conta de
que o que ele
fazia era escolher determinados elementos
diante dos conhecimentos
adquiridos em sua época.
Se o cocô da vaca fosse
colocado no vácuo o movimento
acabaria.
Do século XVI ao XVIII
o movimento fisico foi admitido(contra o mundo antigo
e medieval)e reconhecido,bem como estruturado pela ciência
física.A partir do século XVIII a
idéia do movimento na natureza ,na biologia,
foi posto como hipótese na
zoologia,admitindo que as espécies
poderiam mudar,contra o que dizia
a Bíblia(com a Arca de Noé).A resposta positiva da
Darwin cristalizou o movimento na
biologia.
Contudo a sobrevivência da religião no pensamento científico,bem como do jusnaturalismo(que no
fundo é
também uma sobrevivência da crença
em Deus[São Tomás de Aquino])manteve
esta visão rígida e universalista no pensamento dos autores supra citados,com consequências não só para a
ciência(que se tornou ideologia em grande parte[como consciência falsa])mas também para a
politica.
O grande “
culpado” desta “ universalização”(falsa)
foi Isaac Newton,com o princípio da “ unicidade da natureza”,pelo qual
as leis que
ocorrem no plano terreno valem para todo o universo(naturalmente isto
dava mais força à “ sua” lei da
gravitação universal...).
Hoje ,pelo que já foi dito,tal assertiva não tem
validade.Até mesmo a invariabilidade da
velocidade da luz(como Einstein afirmou)é
posta em dúvida,em consequência da “ indeterminação”(Heisenberg ).O que ocorre no plano terreno não necessariamente se repete no espaço,no universo inteiro.Nós
vemos que o universo apresenta elementos de caos,como é o caso da possibilidade de cair um meteoro destruidor em nosso planeta.
Quando esta “ indeterminação” foi admitida ,ou suposta,pelos cientistas(contra Einstein[“ Deus não joga dados
com o mundo”])a arte intuiu
o fato de que o ser humano não
tem certezas e precisa considerar que a
natureza não é feita para ele e que
a atitude racional é de admitir
esta probabilística e se prevenir.Ficou famoso o quadrinho de Flash Gordon,”No Planeta Mongo”,que começa com o perigo da queda de um meteoro na terra e a humanidade desprevenida,por sua s certezas sem saber
como reagir...
Na questão social
e politica ,a dialética,concebida como movimento universal,trouxe danos ainda maiores,porque ela se colocou como modelo objetivo( a dialética de Hegel era idealista a de Marx [e Engels]materialista),que
deveria ser seguido pela
subjetividade,num dogma que foi
tido como obrigatório para os que eram marxistas e para
os que não eram.
Assim se criou
uma falácia marxista segundo a qual existe uma “ciência burguesa “ e uma “
ciência socialista”,sendo esta
melhor do que aquela por conhecer e
usar a dialética.A ciência burguesa
não se movimenta,a socialista
sim.Se Gregor Mendel,um modesto monge,não conhecia a dialética,sua ciência não tinha validade,sendo “ burguesa” e “medieval”.
Em compensação os soviéticos
tinham o grande Lyssenko que criou as vacas socialistas,usando a dialética.As vacas socialistas eram as melhores por
causa disto.Vê-se um reflexo desta besteira no episódio do Touro Rosafé em Cuba,na década de 70,citado e narrado por Fernando
Morais no livro “ A ilha”.Por ser um touro marxista-leninista ele tinha tudo para desenvolver,sozinho ,a
pecuária daquele país.Mas ele não
aguentou cobrir as vaquinhas todas...
Também se destrói uma visão
vulgar da dialética pela qual o ser
se define por
tudo o que é não é ele,numa irresponsável
atribuição de relação dialética
a tudo o que existe,chegando às raias do
anedótico.Bronowski,que detestava Hegel(entre outras coisas por isto),cita em seu “ Evolução do Homem”
episódio da vida
do filósofo,dando conta de que
certa vez alguém o perguntou como ele explicava,pela dialética, o fato de existirem(naquele
tempo)7 planetas e não
mais e ele teria
dito “ dialeticamente falando
e confirmando a sua validade,só existem
7 planetas porque não existem 8 ou 6”.
Luckács,na sua última
entrevista,em 1970,também reprovava esta visão vulgar ,dizendo que o homem
não podia ser definido por não
ser um barbeador elétrico ou uma vaca.O
não ser do homem não era tudo,não
era qualquer coisa.
A dialética
permanece como um produto da consciência ,um método de prospecção do diálogo,do outro de razão,de sentimento.Assim ela sobrevive
como método democrático,de extração
de pluralidades autênticas e legítimas.Trabalhar com a
oposição,com o outro é uma tarefa
que a dialética pode ajudar a
fazer.
Pensar dialeticamente assim é admitir que só pode
haver integração entre dois discursos porque cada um tem uma identidade própria. A dialética só se
sustém enquanto admite o diferente(e
a identidade) como parte do
processo de compreensão do mundo e de
sua modificação.
O dogma supra referido se sustentava no falacioso critério objetivo pelo qual só se integrando
a subjetividade no movimento se podia dar-lhe sentido,mas o sentido da subjetividade é ela própria como identidade
real que busca na relação (dialética)com
o outro ,formas de relação,plurais e enriquecedoras.
Por isso esta visão cientificista,da dialética objetiva, ajudou o stalinismo em seus horríveis crimes:como
o modelo do movimento objetivo significava
progresso era justo suprimir a
subjetividade;era justo um poder
politico totalitário exigir isto,porque
esta era a forma de integrá-la
no movimento(dialético)do progresso,a
sua destinação(universal).
O stalinismo é o
sujeito-não sujeito,a perversão da dialética,o sujeito que se comporta não em si
mas fora de si,ou por
fora de si,contra tudo e todos.è este
individuo que em nome da ciência(ou da ideologia
cientificista)destrói o outro.
O stalinismo(e Pol-pot,Mao et al)faz o mesmo que a
Igreja católica medieval e
inquisitorial.Como intercessores da verdade,dominando a ciência,o conhecimento (de Deus[o
Deus=ciência]),tutelam a subjetividade,porque
mais do que ela ,conhecem a sua destinação e por
isso teriam o “ direito’ de conduzi-la
ao seu caminho(pela força inclusive).
Tanto o stalinismo como a
Inquisição conduzem a subjetividade
para seus(deles,igreja e Stalin) respectivos Deuses.
Depois de ela pagar a
sua “culpa”,a dialética pode sair da
prisão e respirar novos ares.
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