quinta-feira, 1 de agosto de 2019

Marx era filósofo?

Eu tenho sido tão criticado por fazer certas afirmações sobre Marx que resolvi voltar ao tema das qualificações profissionais do pensador e começo exatamente daí:a distinção entre um pensador e um filósofo.
Ao longo da vida,desde , perguntava o que era a filosofia e a resposta era sempre esta:não se preocupe com isto meu filho porque a maioria dos filósofos não sabe,pois cada um dá uma definição própria, diferente da dos outros.
Perseverei,no entanto,a vida toda e encontrei uma definição que eu considero profissional na professora Katia Muricy,que em seus manuais diz assim:” a filosofia é puramente pensamental;a filosofia(profissionalmente considerada[digo eu])é grega,foi criada pelos gregos.Continua Katia Muricy:”ela relaciona idéias em si mesmas e constrói um discurso”;” estas idéias são mais ou menos inter-relacionadas””constituindo um sistema de pensamento”.
No passado a única coisa que unificava a todos na busca de uma definição da filosofia e do filósofo era a sistematicidade deste saber(não uma ciência),mas ,como vemos,existem outros fundamentos no caldeirão de sua caracterização.
Todo filósofo é um pensador,mas nem todo pensador é um filósofo.No sentido profissional próprio,que fundamenta a sua profissionalidade, filosofia é isto,puramente pensamental.
Mas como todo saber e toda a produção cultural humana,aquilo que acrescenta algo de novo ou de distinto(já que ex nihilo nihil )é de se destacar,de se definir.
Conforme disse em outros artigos,muitas afirmações são comuns a muitos pensadores e produtores culturais.Aquilo que cada um descobre ou produz de distinto é que faz a sua fortuna crítica,mas certas ideias são comuns a muitos.
Se Rafael Sanzio tivesse morrido em 1490 ele não teria nenhuma importância.Foi só quando abraçou a técnica do afresco tirada de Michelângelo que se tornou històricamente conhecível e reconhecível.
Há um crítico americano que faz uma afirmação que muito jumento aí não aceita:Orson Welles era basicamente um realizador.Não tinha ,nesta condição,”criatividade”,conteúdos,que lhes eram dados pelos roteiristas ou textos que usava.As maiores obras de Welles são baseadas em Shakespeare,em livros clássicos ou em roteiros,como o de “ Cidadão Kane”.Se tivesse feito só “ Verdades e Mentiras” ou “ Condessa de Shang Hai” só teria importância como criador de imagens,um realizador.
Aqui no Brasil,como relatei e vou relatar de novo,Josué Montelo escandalizou muita gente,na época da exibição pela TV Globo,da adaptação por Walter Avancini de “ Grande Sertão-Veredas”,ao dizer que Guimarães Rosa só era importante pela linguagem,não necessariamente pelos conteúdos.
É assim que penso em relação aos autores como Marx.Nunca disse que ele não era filósofo,mas alguns de seus textos são abordados como filosofia sem o ser.
Os saberes são distintos mas a realidade os une.Pode se fazer uma discussão axiológica e sociológica ao mesmo tempo(e filosófica,politica,etc,etc.),como ele faz em A Ideologia Alemã;pode se fazer uma análise filosófica e econômica,como nos Manuscritos Econômico-Filosóficos ou nos Grundrisse,mas os saberes são distintos,são coisas diversas.
A obra de Marx é um amálgama destes saberes,unidos,segundo ele,pela dialética ,com a exceção talvez de a Sagrada Família.Neste livro se observa a contribuição filosófica real de Marx,que o torna filósofo:o materialismo é aplicado ao mundo social real.O que ele acrescenta é isto,na história do materialismo:ele o aplica na vida social.
Mas os Grundrisse não podem ser considerados estritamente de filosofia,como muita gente diz.Certo,ele se refere ao “ concreto de pensamento”que nada mais é do que um aprofundamento do método dedutivo-racional de Aristóteles:ele quer dividir o mundo social real até encontrar o concreto mais individualizado possível,mas,como eu já disse,isto é impossível.
O que é uma abstração vazia?Uma ideação sem correspondente no real?Vou retornar a estes problemas:quando se idealiza um ser,uma mulher,por exemplo,é lógico que a forma que a subjetividade idealiza não se adequa porque o tempo,imediatamente,a modifica inexoravelmente.Uma abstração é feita para extrair padrões comuns às coisas.Se digo fruta,sei que não existe uma fruta destacada,mas várias “ frutificações” com caracteres comuns.Isto não é uma forma de “concreto de pensamento”?
Abstração vazia são os trancendentais como DEUS(São Tomás de Aquino);a geometria de Platão ou as figuras geométricas de Kant,apreendidas pelos Juízos Sintéticos A Priori(o apriorismo de Kant é uma tentativa frustrada de criar um idealismo separado do real,da experiência humana[definir o mundo previamente,sem o seu concurso ,é um objetivo quimérico de Kant]).
Como eu disse em outros artigos que relembro agora,às vezes o que um autor diz não faz o sentido que ele deseja.Neste último caso de Kant,ele intenta uma idealização,mas o reconhecimento da união da razão com a percepção e a sensibilidade,na consciência subjetiva o desmente.Às vezes um autor é datado e é traído pelas condicionantes de seu tempo.Por isso o temor reverencial a um autor é prejudicial ao progresso.Imagine se Galileu tivesse este temor diante de Aristóteles e sua risivel “Physica”?
Hegel se refere à “ Razão Universal”,fato que levou Marx e outros a chamá-lo de idealista,mas ele está falando sobre a “Physis”,o Ser em geral.A razão universal é uma abstração vazia,porque ela não abarca o mundo todo.Propô-la filosoficamente é idealismo,mas não é bem isto o que Hegel diz.
Então Marx é um pensador porque aborda muitos saberes.Mas nem sempre é profissional,embora dê contribuições como pesquisador e estudioso.
O fato dele pesquisar um livro como a “ Filosofia do Direito” de Hegel não o torna advogado.E as contribuições de sua crítica a este texto são religiosas:” O respiro da criatura oprimida,o coração de um mundo sem coração” e os fundamentos de suas reflexões,que atraíram Engels, são Feuerbachianos(Feuerbach,que por sua vez se inspira num Pré-socrático:Xenófanes de Colofão).Fora isto não tem nada.E o que ele acrescenta é a visão de classe(ausente em Feuerbach).
Ler um livro jurídico não o torna advogado,precisa de mais coisa para ser profissional.
Porque Marx não foi professor de filosofia?Bruno Bauer prometeu a ele um lugar na Universidade,mas perdeu o seu lugar e não pode cumprir a promessa.Isto aconteceu porque Bauer não ia discutir a relação alma/corpo,como Marx também.Quando Bauer se recusou a tratar destes assuntos foi excluído para sempre.Acaso Marx ia fazer estas discussões terológicas?Mas ele não tinha a compreensão do que falamos acima,do caráter profissional da filosofia,que é grega.Então invectivou contra esta matéria,inquinando-a de idealismo e de desimportância.Dizem que esta frase:”a filosofia está para a vida,como a masturbação para o sexo”é dele(não pude confirmar),mas a filosofia,depois do fim da Grécia,se tornou uma mistura amadora de questões ideológicas e politicas,em grande parte discurso de poder.Foi com isto que ele tomou contato.
Hegel foi tido por uma banca examinadora,como “ inapto para a filosofia”,mas esta avaliação entra nesta melèe aí:o que era filosofia na época?A filosofia se profissionalizou em alguns autores e no século XX tomou novo impulso neste aspecto.
O fato de Marx acrescentar algo ao materialismo(o materialismo histórico[resignificado])o torna um profissional?Talvez sim,mas esta contribuição só não é suficiente.
Marx era profissionalmente um economista,um pesquisador em diversas áreas,filósofo(viram?),pensador,um publicista,um jornalista e poderia ser mais coisa.Marx é uma das pouquíssimas pessoas que transitaria em alto nível pelas ciências humanas e as ciências naturais.Eu achava e acho Marx um gênio,mas pensava que ele era como todo estudioso da sociedade: limitado aos saberes sociais,mas vi uma vez na “ Dialética da Natureza” uma observação de Engels a respeito de sua condição de “ matemático consumado”.Pensava eu que os cálculos de “ O Capital” não eram dele,mas eram e recentemente foi descoberto um texto dele sobre cálculo integral e diferencial que habilitaria Marx,se ele tivesse caído entre aqueles físicos do século XIX,a chegar à relatividade...
Mas Marx,por limitação de época,não conheceu a sociologia e comete erros nesta área e como politico era muito ruim(eu vou falar sobre isto em outro artigo).
Como Freud(outro judeu)ele tem um natureza profissional e uma condição de pensador/pesquisador que aborda tudo e tira conclusões úteis,mas nem sempre profissionais,ou suficientemente profissionais.Freud,psicanalista ,influencia outras profissões,como pensador das consequencias do seu trabalho no mundo.Marx também.
Marx ,como aponta Isaiah Berlin,era obsessivo e um Leonardo Da Vinci:dividia o seu escritório com cordas,cada uma separando um lugar próprio de um saber.Economia,História,Politica.Aliás é conhecido o texto histórico de Marx sobre Bolivar,muito ruim.Quem diz isto é Perry Anderson.Marx era péssimo historiador,embora tenha oferecido novos conceitos para ela.
Marx e Da Vinci são figuras ciclópicas,gênios,mas não acertam sempre.Assunto para outro artigo.

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