domingo, 10 de junho de 2018

Mais provas do diletantismo filosófico de Marx



Lendo o livro de Luciano Gruppi,marxista italiano,”O conceito de hegemonia em Gramsci”,deparei-me com estes parágrafos,a respeito das relações entre Benedetto Croce  e Gramsci:
“ A operação realizada por Croce-que consiste em por o abstrato no lugar do concreto,o conceito ou pensamento do homem no lugar da realidade natural ou social-é a típica inversão idealista.A essa inversão de tipo idealista Marx  já se referia  em “ A Sagrada Família”:” Se das maçãs,peras,morangos e amêndoas  reais formo a representação geral “ fruto”;se vou além e imagino que o ´fruto´ da minha representação abstrata,extraída das frutas reais,é uma essência existente fora de mim e ,aliás ,a  essência verdadeira da maçã ,da pêra e da amêndoa ,declaro-com expressão especulativa-que o fruto é a substância da pêra ,da maçã e da amêndoa”-Temos aqui o procedimento idealista.
“ O essencial nestas coisas-diz Marx-não seria a sua existência real,intuível sensivelmente ,mas a essência que extraí delas e a elas atribuí,a essência da minha representação,o  ‘fruto’.Declaro então que a maçã,pêra,morango e amendoa  são simples modos de existência ,modos do “ fruto”.
E conclui Gruppi:” Assim procedia Hegel  e assim procede  Croce:no lugar de Dante e Shakespeare põem a poesia,o conceito abstrato.É o velho raciocínio platônico”.
Vamos por partes:isto tudo é uma meia verdade.Mas do ponto de vista da história da Filosofia e do pensamento de alguns autores que fazem parte dela,é uma confusãosinha.
O pensamento abstrato que extrai os modos do ser deriva do pensamento de Aristóteles,que é,segundo Popper,a matriz do pensamento de Hegel( e eu digo de Marx e de Croce).Platão pensa de modo diferente:as idéias,que correspondem ao traçado geométrico do universo,existem por si mesmas e são o modelo deste universo ou antes,para alguns,são  este universo,daí que se chama a filosofia de Platão o “ realismo das Idéias”,uma discussão interminável e até hoje inconclusiva.Platão separa a razão da sensibilidade,o que é impossível.
Aristóteles era,diferentemente de seu mestre Platão,um observador da natureza, a qual,ele via,se modificava,segundo os critérios formais dele,do filósofo.Mas neste aspecto a abstração tem um contato,pelo modo de mudança,com a realidade.
Quando Aristóteles(e os outros citados)se refere aos modos do ser ,às suas diferenças,está se referindo a algo real.Ele pensa,e aí Marx tem uma certa razão, que existe uma adequação do conceito na  consciência com  o real,identificando a essência abstrata da coisa,do Ser,com a sua substância real,que não é intuída senão como algo real.A observação é algo,retenhamos aqui, real,que contacta o real mesmo,nas suas manifestações.
Mas quando,no mundo moderno,a noção de movimento e de tempo,estão solidificadas,a relação entre a consciência ,que elabora o conceito, e o real, adquire contornos mais complexos.A intuição é um processo(mnemônico inclusive)que ,para além da pura observação racional,inclui um sujeito participante e atuante(antropologia do trabalho e linguagem subjetiva).
O que Marx não entendeu,pelas razões a que eu já aludi em outro artigo,é que este processo de tempo,de passagem das coisas não se resume na antropologia do trabalho,na atuação qualquer que seja ela(política,social),mas atinge a linguagem subjetiva.
Já me referi ao fato de que conceber isto era difícil nesta época,citando Habermas,mas,analisando as afirmações fixadas no inicio,e conhecendo a filosofia,como deveria conhecer um bom estudioso dela,era possível notar que a linguagem do conceito fruto não é apenas tido como produto da consciência(sem conexão com o real).Isto podia ser verdade para alguns filósofos,mas não todos.Ao dizer “ fruto” estamos nos referindo `a ” frutificação”,algo que já frutificou e já está maduro para ser consumido.Por metáfora se diz que o nascido(como Cristo)é  um “ fruto do ventre”,mas isto diz respeito à arte,à narrativa,à descrição histórica e sociológica.
A percepção do tempo indica mais que observação racional,mas sensibilidade real para apreender um fenômeno do mundo(natural e social).É uma sensibilidade,uma experiência,a ser entranhada pelo sujeito(que é constituído por este entranhamento).
Então quando determinados padrões  forem definidos,como este de “ fruta”,são extraídos não só pela razão,mas por ela e a sensibilidade de perceber,pelos sentidos do corpo,como algo real.
Se nós formos na etimologia da palavra fruta,até chegar na comunidade primitiva,pode ser que ela ,ou a palavra primitiva,originária,não tenha nada que ver com os modos de frutificação,mas o movimento está lá,intocado,em J            ericó e em Konigsberg.Perceptível.
Se nós usarmos duas outras palavras ou “ conceitos”,como “ basilisco”,animal medieval mitológico,criado pela imaginação, ou Homem,para designar a humanidade(homem e mulher,macho e fêmea),veremos que são criações que não possuem adequação com o real,claramente o primeiro.
Mas no caso, e isto  é muito importante ,daqui por diante,para tratar de Nietzsche e Luckács,do segundo,” Homem”,nós veremos que existe uma “ distorção” do real,por parte da consciência humana-histórica-temporal,que atribui à humanidade um termo que só tem relação com o macho e não com a fêmea,ou seja,expressando valores e significados condicionados por contextos histórico-temporais específicos.No entanto,a percepção sensível,a intuição de que há algo real existe  e esta é a razão da distorção:os valores de atribuição distorcem por motivos  a serem  entendidos,mas que conformam uma realidade,uma realidade social.Mas não se pode dizer que este conceito é independente da realidade,porque ele deriva,apesar de indiretamente,do contato corpóreo do “ homem” com um fato real,mesmo que sensível,como “ humanidade”.É este tipo de atribuição que funda o pensamento de Kant e tem reflexos em Nietzsche,mas este é assunto para um outro texto.
O que eu tenho dito é que um pensador que se empenhasse mais no estudo da filosofia teria entendido esta problemática e esta crítica vale para os filósofos todos ,citados,talvez livrando Platão e Aristóteles,por suas limitações de conhecimento e históricas(que se imbricam afinal).
Mas os outros são como a maioria dos filósofos:na hora da criação ,os modelos escolhidos por eles são a premissa,não verificada,de suas elaborações e ,por vício de origem ,as suas conseqüências erráticas não são (quase)nunca prescrutadas por seus criadores.
Por isso Nietzsche defende uma “ filosofia errática”,baseada na admissão do caráter errante da vida humana,que,por inevitabilidade,ou distorce o real ou não tem como ,por vários motivos,ter certeza de tudo.
Um personagem da literatura,como Policarpo Quaresma,tem elementos do real humano percebido e  de imaginação e atribuição axiológica,revelando ,em ultima análise  que o conhecimento humano é um amálgama de várias mediações do contato subjetivo-objetivo,como estas e outras.
Preocupado com a dialética e suas leis,Hegel,Marx( e Croce)poderiam ter compreendido isto.
E há um erro em Gruppi,resultante desta incompreensão profissional e lógica:Dante e Shakespeare não são a poesia,pois esta está no papel;eles são  poetas,poetizar,poiética( no sentido grego),vários conceitos.O conceito de poesia ,nos seus modos,se relaciona com algo real,cultural.Há abstrações puramente ideais,como basilisco ou “ matéria”(pois quando se diz matéria não se designa nada,mas muitos modos de sua manifestação[assunto para o próximo texto]).E há abstrações que se referem a algo real,mediatizadas pela sensibilidade e pela experiência.

Nenhum comentário:

Postar um comentário