Eu
tenho sido tão criticado por fazer certas afirmações sobre Marx
que resolvi voltar ao tema das qualificações profissionais do
pensador e começo exatamente daí:a distinção entre um pensador e
um filósofo.
Ao
longo da vida,desde , perguntava o que era a filosofia e a resposta
era sempre esta:não se preocupe com isto meu filho porque a maioria
dos filósofos não sabe,pois cada um dá uma definição própria,
diferente da dos outros.
Perseverei,no
entanto,a vida toda e encontrei uma definição que eu considero
profissional na professora Katia Muricy,que em seus manuais diz
assim:” a filosofia é puramente pensamental;a
filosofia(profissionalmente considerada[digo eu])é grega,foi criada
pelos gregos.Continua Katia Muricy:”ela relaciona idéias em si
mesmas e constrói um discurso”;” estas idéias são mais ou
menos inter-relacionadas””constituindo um sistema de pensamento”.
No
passado a única coisa que unificava a todos na busca de uma
definição da filosofia e do filósofo era a sistematicidade deste
saber(não uma ciência),mas ,como vemos,existem outros fundamentos
no caldeirão de sua caracterização.
Todo
filósofo é um pensador,mas nem todo pensador é um filósofo.No
sentido profissional próprio,que fundamenta a sua profissionalidade,
filosofia é isto,puramente pensamental.
Mas
como todo saber e toda a produção cultural humana,aquilo que
acrescenta algo de novo ou de distinto(já que ex nihilo nihil )é
de se destacar,de se definir.
Conforme
disse em outros artigos,muitas afirmações são comuns a muitos
pensadores e produtores culturais.Aquilo que cada um descobre ou
produz de distinto é que faz a sua fortuna crítica,mas certas
ideias são comuns a muitos.
Se
Rafael Sanzio tivesse morrido em 1490 ele não teria nenhuma
importância.Foi só quando abraçou a técnica do afresco tirada de
Michelângelo que se tornou històricamente conhecível e
reconhecível.
Há
um crítico americano que faz uma afirmação que muito jumento aí
não aceita:Orson Welles era basicamente um realizador.Não tinha
,nesta condição,”criatividade”,conteúdos,que lhes eram dados
pelos roteiristas ou textos que usava.As maiores obras de Welles são
baseadas em Shakespeare,em livros clássicos ou em roteiros,como o de
“ Cidadão Kane”.Se tivesse feito só “ Verdades e Mentiras”
ou “ Condessa de Shang Hai” só teria importância como criador
de imagens,um realizador.
Aqui
no Brasil,como relatei e vou relatar de novo,Josué Montelo
escandalizou muita gente,na época da exibição pela TV Globo,da
adaptação por Walter Avancini de “ Grande Sertão-Veredas”,ao
dizer que Guimarães Rosa só era importante pela linguagem,não
necessariamente pelos conteúdos.
É
assim que penso em relação aos autores como Marx.Nunca disse que
ele não era filósofo,mas alguns de seus textos são abordados como
filosofia sem o ser.
Os
saberes são distintos mas a realidade os une.Pode se fazer uma
discussão axiológica e sociológica ao mesmo tempo(e
filosófica,politica,etc,etc.),como ele faz em A Ideologia Alemã;pode
se fazer uma análise filosófica e econômica,como nos Manuscritos
Econômico-Filosóficos ou nos Grundrisse,mas os saberes são
distintos,são coisas diversas.
A
obra de Marx é um amálgama destes saberes,unidos,segundo ele,pela
dialética ,com a exceção talvez de a Sagrada Família.Neste livro
se observa a contribuição filosófica real de Marx,que o torna
filósofo:o materialismo é aplicado ao mundo social real.O que ele
acrescenta é isto,na história do materialismo:ele o aplica na vida
social.
Mas
os Grundrisse não podem ser considerados estritamente de
filosofia,como muita gente diz.Certo,ele se refere ao “ concreto de
pensamento”que nada mais é do que um aprofundamento do método
dedutivo-racional de Aristóteles:ele quer dividir o mundo social
real até encontrar o concreto mais individualizado possível,mas,como
eu já disse,isto é impossível.
O
que é uma abstração vazia?Uma ideação sem correspondente no
real?Vou retornar a estes problemas:quando se idealiza um ser,uma
mulher,por exemplo,é lógico que a forma que a subjetividade
idealiza não se adequa porque o tempo,imediatamente,a modifica
inexoravelmente.Uma abstração é feita para extrair padrões comuns
às coisas.Se digo fruta,sei que não existe uma fruta destacada,mas
várias “ frutificações” com caracteres comuns.Isto não é uma
forma de “concreto de pensamento”?
Abstração
vazia são os trancendentais como DEUS(São Tomás de Aquino);a
geometria de Platão ou as figuras geométricas de Kant,apreendidas
pelos Juízos Sintéticos A Priori(o apriorismo de Kant é uma
tentativa frustrada de criar um idealismo separado do real,da
experiência humana[definir o mundo previamente,sem o seu concurso ,é
um objetivo quimérico de Kant]).
Como
eu disse em outros artigos que relembro agora,às vezes o que um
autor diz não faz o sentido que ele deseja.Neste último caso de
Kant,ele intenta uma idealização,mas o reconhecimento da união da
razão com a percepção e a sensibilidade,na consciência subjetiva
o desmente.Às vezes um autor é datado e é traído pelas
condicionantes de seu tempo.Por isso o temor reverencial a um autor
é prejudicial ao progresso.Imagine se Galileu tivesse este temor
diante de Aristóteles e sua risivel “Physica”?
Hegel
se refere à “ Razão Universal”,fato que levou Marx e outros a
chamá-lo de idealista,mas ele está falando sobre a “Physis”,o
Ser em geral.A razão universal é uma abstração vazia,porque ela
não abarca o mundo todo.Propô-la filosoficamente é idealismo,mas
não é bem isto o que Hegel diz.
Então
Marx é um pensador porque aborda muitos saberes.Mas nem sempre é
profissional,embora dê contribuições como pesquisador e estudioso.
O
fato dele pesquisar um livro como a “ Filosofia do Direito” de
Hegel não o torna advogado.E as contribuições de sua crítica a
este texto são religiosas:” O respiro da criatura oprimida,o
coração de um mundo sem coração” e os fundamentos de suas
reflexões,que atraíram Engels, são Feuerbachianos(Feuerbach,que
por sua vez se inspira num Pré-socrático:Xenófanes de
Colofão).Fora isto não tem nada.E o que ele acrescenta é a visão
de classe(ausente em Feuerbach).
Ler
um livro jurídico não o torna advogado,precisa de mais coisa para
ser profissional.
Porque
Marx não foi professor de filosofia?Bruno Bauer prometeu a ele um
lugar na Universidade,mas perdeu o seu lugar e não pode cumprir a
promessa.Isto aconteceu porque Bauer não ia discutir a relação
alma/corpo,como Marx também.Quando Bauer se recusou a tratar destes
assuntos foi excluído para sempre.Acaso Marx ia fazer estas
discussões terológicas?Mas ele não tinha a compreensão do que
falamos acima,do caráter profissional da filosofia,que é
grega.Então invectivou contra esta matéria,inquinando-a de
idealismo e de desimportância.Dizem que esta frase:”a filosofia
está para a vida,como a masturbação para o sexo”é dele(não
pude confirmar),mas a filosofia,depois do fim da Grécia,se tornou
uma mistura amadora de questões ideológicas e politicas,em grande
parte discurso de poder.Foi com isto que ele tomou contato.
Hegel
foi tido por uma banca examinadora,como “ inapto para a
filosofia”,mas esta avaliação entra nesta melèe aí:o que era
filosofia na época?A filosofia se profissionalizou em alguns autores
e no século XX tomou novo impulso neste aspecto.
O
fato de Marx acrescentar algo ao materialismo(o materialismo
histórico[resignificado])o torna um profissional?Talvez sim,mas esta
contribuição só não é suficiente.
Marx era profissionalmente um economista,um pesquisador
em diversas áreas,filósofo(viram?),pensador,um publicista,um
jornalista e poderia ser mais coisa.Marx é uma das pouquíssimas
pessoas que transitaria em alto nível pelas ciências humanas e as
ciências naturais.Eu achava e acho Marx um gênio,mas pensava que
ele era como todo estudioso da sociedade: limitado aos saberes
sociais,mas vi uma vez na “ Dialética da Natureza” uma
observação de Engels a respeito de sua condição de “ matemático
consumado”.Pensava eu que os cálculos de “ O Capital” não
eram dele,mas eram e recentemente foi descoberto um texto dele sobre
cálculo integral e diferencial que habilitaria Marx,se ele tivesse
caído entre aqueles físicos do século XIX,a chegar à
relatividade...
Mas
Marx,por limitação de época,não conheceu a sociologia e comete
erros nesta área e como politico era muito ruim(eu vou falar sobre
isto em outro artigo).
Como Freud(outro judeu)ele tem um natureza profissional
e uma condição de pensador/pesquisador que aborda tudo e tira
conclusões úteis,mas nem sempre profissionais,ou suficientemente
profissionais.Freud,psicanalista ,influencia outras profissões,como
pensador das consequencias do seu trabalho no mundo.Marx também.
Marx ,como aponta Isaiah Berlin,era obsessivo e um
Leonardo Da Vinci:dividia o seu escritório com cordas,cada uma
separando um lugar próprio de um
saber.Economia,História,Politica.Aliás é conhecido o texto
histórico de Marx sobre Bolivar,muito ruim.Quem diz isto é Perry
Anderson.Marx era péssimo historiador,embora tenha oferecido novos
conceitos para ela.
Marx e Da Vinci são figuras ciclópicas,gênios,mas não
acertam sempre.Assunto para outro artigo.