Lendo
o livro de Luciano Gruppi,marxista italiano,”O conceito de hegemonia em Gramsci”,deparei-me
com estes parágrafos,a respeito das relações entre Benedetto Croce e Gramsci:
“
A operação realizada por Croce-que consiste em por o abstrato no lugar do
concreto,o conceito ou pensamento do homem no lugar da realidade natural ou
social-é a típica inversão idealista.A essa inversão de tipo idealista
Marx já se referia em “ A Sagrada Família”:” Se das
maçãs,peras,morangos e amêndoas reais
formo a representação geral “ fruto”;se vou além e imagino que o ´fruto´ da
minha representação abstrata,extraída das frutas reais,é uma essência existente
fora de mim e ,aliás ,a essência
verdadeira da maçã ,da pêra e da amêndoa ,declaro-com expressão
especulativa-que o fruto é a substância da pêra ,da maçã e da amêndoa”-Temos
aqui o procedimento idealista.
“
O essencial nestas coisas-diz Marx-não seria a sua existência real,intuível
sensivelmente ,mas a essência que extraí delas e a elas atribuí,a essência da
minha representação,o ‘fruto’.Declaro
então que a maçã,pêra,morango e amendoa
são simples modos de existência ,modos do “ fruto”.
E
conclui Gruppi:” Assim procedia Hegel e
assim procede Croce:no lugar de Dante e
Shakespeare põem a poesia,o conceito abstrato.É o velho raciocínio platônico”.
Vamos
por partes:isto tudo é uma meia verdade.Mas do ponto de vista da história da
Filosofia e do pensamento de alguns autores que fazem parte dela,é uma confusãosinha.
O
pensamento abstrato que extrai os modos do ser deriva do pensamento de
Aristóteles,que é,segundo Popper,a matriz do pensamento de Hegel( e eu digo de
Marx e de Croce).Platão pensa de modo diferente:as idéias,que correspondem ao
traçado geométrico do universo,existem por si mesmas e são o modelo deste
universo ou antes,para alguns,são este universo,daí que se chama a filosofia de
Platão o “ realismo das Idéias”,uma discussão interminável e até hoje
inconclusiva.Platão separa a razão da sensibilidade,o que é impossível.
Aristóteles
era,diferentemente de seu mestre Platão,um observador da natureza, a qual,ele
via,se modificava,segundo os critérios formais dele,do filósofo.Mas neste
aspecto a abstração tem um contato,pelo modo de mudança,com a realidade.
Quando
Aristóteles(e os outros citados)se refere aos modos do ser ,às suas diferenças,está
se referindo a algo real.Ele pensa,e aí Marx tem uma certa razão, que existe
uma adequação do conceito na consciência
com o real,identificando a essência
abstrata da coisa,do Ser,com a sua substância real,que não é intuída senão como
algo real.A observação é algo,retenhamos aqui, real,que contacta o real
mesmo,nas suas manifestações.
Mas
quando,no mundo moderno,a noção de movimento e de tempo,estão solidificadas,a
relação entre a consciência ,que elabora o conceito, e o real, adquire
contornos mais complexos.A intuição é um processo(mnemônico inclusive)que ,para
além da pura observação racional,inclui um sujeito participante e
atuante(antropologia do trabalho e linguagem subjetiva).
O
que Marx não entendeu,pelas razões a que eu já aludi em outro artigo,é que este
processo de tempo,de passagem das coisas não se resume na antropologia do
trabalho,na atuação qualquer que seja ela(política,social),mas atinge a
linguagem subjetiva.
Já
me referi ao fato de que conceber isto era difícil nesta época,citando
Habermas,mas,analisando as afirmações fixadas no inicio,e conhecendo a filosofia,como
deveria conhecer um bom estudioso dela,era possível notar que a linguagem do
conceito fruto não é apenas tido como produto da consciência(sem conexão com o
real).Isto podia ser verdade para alguns filósofos,mas não todos.Ao dizer “
fruto” estamos nos referindo `a ” frutificação”,algo que já frutificou e já
está maduro para ser consumido.Por metáfora se diz que o nascido(como Cristo)é um “ fruto do ventre”,mas isto diz respeito à
arte,à narrativa,à descrição histórica e sociológica.
A
percepção do tempo indica mais que observação racional,mas sensibilidade real
para apreender um fenômeno do mundo(natural e social).É uma sensibilidade,uma
experiência,a ser entranhada pelo sujeito(que é constituído por este
entranhamento).
Então
quando determinados padrões forem
definidos,como este de “ fruta”,são extraídos não só pela razão,mas por ela e a
sensibilidade de perceber,pelos sentidos do corpo,como algo real.
Se
nós formos na etimologia da palavra fruta,até chegar na comunidade
primitiva,pode ser que ela ,ou a palavra primitiva,originária,não tenha nada
que ver com os modos de frutificação,mas o movimento está lá,intocado,em J ericó e em Konigsberg.Perceptível.
Se
nós usarmos duas outras palavras ou “ conceitos”,como “ basilisco”,animal
medieval mitológico,criado pela imaginação, ou Homem,para designar a humanidade(homem
e mulher,macho e fêmea),veremos que são criações que não possuem adequação com
o real,claramente o primeiro.
Mas
no caso, e isto é muito importante
,daqui por diante,para tratar de Nietzsche e Luckács,do segundo,” Homem”,nós
veremos que existe uma “ distorção” do real,por parte da consciência
humana-histórica-temporal,que atribui à humanidade um termo que só tem relação
com o macho e não com a fêmea,ou seja,expressando valores e significados
condicionados por contextos histórico-temporais específicos.No entanto,a
percepção sensível,a intuição de que há algo real existe e esta é a razão da distorção:os valores de
atribuição distorcem por motivos a serem
entendidos,mas que conformam uma
realidade,uma realidade social.Mas não se pode dizer que este conceito é
independente da realidade,porque ele deriva,apesar de indiretamente,do contato
corpóreo do “ homem” com um fato real,mesmo que sensível,como “ humanidade”.É
este tipo de atribuição que funda o pensamento de Kant e tem reflexos em
Nietzsche,mas este é assunto para um outro texto.
O
que eu tenho dito é que um pensador que se empenhasse mais no estudo da
filosofia teria entendido esta problemática e esta crítica vale para os
filósofos todos ,citados,talvez livrando Platão e Aristóteles,por suas limitações
de conhecimento e históricas(que se imbricam afinal).
Mas
os outros são como a maioria dos filósofos:na hora da criação ,os modelos
escolhidos por eles são a premissa,não verificada,de suas elaborações e ,por
vício de origem ,as suas conseqüências erráticas não são (quase)nunca
prescrutadas por seus criadores.
Por
isso Nietzsche defende uma “ filosofia errática”,baseada na admissão do caráter
errante da vida humana,que,por inevitabilidade,ou distorce o real ou não tem
como ,por vários motivos,ter certeza de tudo.
Um
personagem da literatura,como Policarpo Quaresma,tem elementos do real humano
percebido e de imaginação e atribuição
axiológica,revelando ,em ultima análise que o conhecimento humano é um amálgama de várias
mediações do contato subjetivo-objetivo,como estas e outras.
Preocupado
com a dialética e suas leis,Hegel,Marx( e Croce)poderiam ter compreendido isto.
E
há um erro em Gruppi,resultante desta incompreensão profissional e lógica:Dante
e Shakespeare não são a poesia,pois esta está no papel;eles são poetas,poetizar,poiética( no sentido
grego),vários conceitos.O conceito de poesia ,nos seus modos,se relaciona com
algo real,cultural.Há abstrações puramente ideais,como basilisco ou “ matéria”(pois
quando se diz matéria não se designa nada,mas muitos modos de sua
manifestação[assunto para o próximo texto]).E há abstrações que se referem a
algo real,mediatizadas pela sensibilidade e pela experiência.