As idéias
formuladas por Karl Marx nos fazem ver
que os conflitos sociais têm origem na estrutura de classes da sociedade - e
não no comportamento deste ou daquele indivíduo. Ou seja, a partir de Marx o
foco se deslocava do exame da natureza humana para o conhecimento da sociedade,
a sua constituição. Eis aí uma razão suplementar para que cada um de nós se
empenhe em compreender, por exemplo, os problemas que rondaram o socialismo e
sua construção no século XX.
Hoje,
vejo com maior clareza a necessidade de reconhecer a pluralidade das formas de
propriedade e também o imperativo de combinar o espírito de iniciativa das
pessoas com uma ordem social mais justa. Evidentemente, reconheço os abalos
sérios que o socialismo sofreu e creio que isso se deveu a diversos fatores. Um
deles foi sem dúvida o afastamento do ideário socialista da democracia. A União
Soviética sob Stalin, o Camboja de Pol Pot ou a Coreia de Kim Jong-un são
exemplos dramáticos disso. Outro pode ser tributado à infiltração que o
nacionalismo promoveu nesse mesmo ideário, a ponto de qualquer ditadorzinho
mixuruca, ao se posicionar contra o "imperialismo norte-americano",
merecer o apoio integral e acrítico da esquerda comunista no mundo. É fato que
a questão nacional nos chamados países periféricos pode incidir sobre a luta
social nas áreas centrais. O próprio Karl Marx teve essa visão em relação à
Irlanda, por exemplo, cuja luta nacional poderia contribuir para enfraquecer ou
abalar o capitalismo inglês. Os povos oprimidos, muitos deles frutos da expansão
do próprio capitalismo, entravam doravante em cena, tornando-se, ao menos
potencialmente, aliados do proletariado das metrópoles. Contudo, os marxistas
logo perceberiam que o nacionalismo dos povos oprimidos poderia se transformar,
também, em força conservadora, ou até mesmo reacionária, dependendo do menor ou
maior empenho das classes subalternas em dirigir o processo. Na visão de um
historiador e militante como Eric Hobsbawn, era preciso evitar a subordinação
dos marxistas aos nacionalistas, ou seja, afastar o perigo da supervalorização
da questão nacional (muitas vezes em detrimento da questão democrática, eu
acrescentaria).e isso aconteceu não poucas vezes. Vladimir Lênin, que defendia
um espaço supranacional como a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, era
extremamente cauteloso diante do nacionalismo, até mesmo do nacionalismo
progressista: “não pintemos de vermelho o nacionalismo”, advertia. Na
realidade, as articulações entre luta social e questão nacional nunca foram
muito simples, bastando citar o exemplo da II Internacional, que sucumbiu
frente aos diferentes nacionalismos em 1914-1918.
De outra parte, a História recente também demonstra que algumas experiências
buscaram fugir de
modelos de corte autoritário e penso nos esforços desenvolvidos pelos chamados
austromarxistas, pelos iugoslavos da época de Tito (com algumas reservas,
naturalmente), pelos partidários da Unidade Popular no Chile de Salvador
Allende e pelos eurocomunistas, sobretudo os italianos. Mas foram experiências
laterais, digamos assim. Normalmente, a questão da democracia sempre ficou
escanteada, algo para ser tratado depois, apesar do valor que Marx e Engels
davam ao sufrágio universal (mas há quem defenda o ponto de vista, como o
estudioso e militante argentino José Aricó – e ele talvez não esteja tão
equivocado assim – de que o próprio Karl Marx tivesse dificuldades em lidar com
a questão institucional).
De qualquer maneira, o autoritarismo tem recuado no mundo nas últimas décadas e
cresce o entendimento de que as conquistas cívicas e as liberdades individuais
são inseparáveis das próprias conquistas sociais.
A plena compreensão do papel do capital - e do próprio mercado, diga-se de
passagem - também ficou suspensa, sem que os comunistas soubessem como
enfrentá-la. O capital, como sabemos, é anterior ao capitalismo, mas somente
neste é que ele domina a produção (o próprio termo capitalismo surgiria apenas
em 1854, seis anos depois do lançamento do Manifesto do Partido
Comunista, diga-se de passagem). Vai ficando claro hoje que o mercado
- um dado da economia e que surge da divisão do trabalho - tem de ser
regulado, controlado, pela própria sociedade. Em outras palavras: nem o mercado
pode dirigir a sociedade, nem o Estado pode sufocar o mercado. Mas a sociedade
organizada pode perfeitamente regular o mercado. A diferença do mercado
capitalista para outras formas de mercado reside no fato de que, sob o
capitalismo, a própria força de trabalho “desponta como uma mercadoria”,
conforme salientou Marx em O Capital.
Não tenho ideia se será possível abolir tão cedo a produção de mercadorias –
mas talvez se possa pensar, desde já, em uma produção de mercadorias diferente
desta que aí está. Seja como for, há um propósito sobre o mercado que me impressiona
e faz refletir muito. Trata-se de uma opinião formulada pelo Prêmio Nobel
Amartya Sem. Disse esse economista indiano ser necessário ”fundar a
liberdade e a dignidade do homem sobre a capacidade que cada um dispõe de
procurar por si próprio os recursos suficientes”. Ou seja, o trabalho por
conta própria podendo se apresentar, em futuro bem próximo, como uma das saídas
para a autonomia humana. Em 2011, no Brasil, o trabalho independente já
representava significativos 21% do conjunto da força de trabalho. Segundo o
IBGE, trabalho por conta própria é aquele em que o trabalhador nele envolvido,
sozinho ou com um sócio, explora seu empreendimento, sem recorrer a nenhum
empregado ou assalariado. Essa pode ser uma das vias de ruptura com o modo de
produção capitalista - da mesma forma que o artesão e todo um leque de
profissões autônomas propiciaram a ultrapassagem do feudalismo, uma ordem
social que se definia, segundo Marx, pelo domínio pelos grandes proprietários
de terra sobre a sociedade em seu conjunto, onde o o sobretrabalho
alcançava as mais diferentes formas (renda-trabalho, impostos, renda-dinheiro).
Como lembrou Wright Mills no seu A nova classe média, nem só de “contradições
materiais” vive o conflito de classes. Assim, “entre consciência e
existência há”, no dizer do sociólogo norte-americano, “as comunicações, que
influenciam a consciência que os homens têm de sua existência”.
Uma
questão das mais complicadas tem que ver ainda com o fato de o chamado
socialismo real não ter forjado uma base material própria, como o capitalismo o
fez (no caso, com a unidade fabril). O chamado socialismo real ficou sem base,
literalmente. E essa base, ao menos em termos técnicos, eclodiu no capitalismo
avançado, com a robótica e outros experimentos nessa linha. Os últimos escritos
de Karl Marx tinham que ver exatamente com a problemática da automação. Extrair
mais-valia de robô é meio difícil. Mais: pelas mutações que ocorrem na
composição orgânica do capital – o engenheiro e histórico dirigente comunista
Sérgio Augusto de Moraes recordou isso em excelente artigo sobre o livro O
inferno, de Dan Brown – a tendência é o recurso ao emprego de um contingente
cada vez menor de trabalhadores na esfera diretamente produtiva, sobretudo nos
centros mais avançados. As consequências disso são visíveis:\o capitalismo, que
em uma primeira fase acelera a taxa de crescimento demográfico, hoje a
desacelera consideravelmente.
Eu havia
feito um debate no Teatro Casa Grande no Rio de Janeiro, onde abordei esses
temas. Meu amigo João Luiz de Araújo Ribeiro, um historiador de primeira linha,
me lembrou então que eu tinha dito algumas coisas que iam ao encontro das
ideias de Simone Weil. Eu falei para ele que não conhecia quase nada dela,
afora um ou outro artigo. E o João Luiz me repassou então três ou quatro
livros, que pertenceram à seleta biblioteca de seu avô, um homem muito culto,
jornalista e tradutor. Realmente, havia ali observações interessantíssimas
sobre a organização do mundo do trabalho. Para Simone Weil, a dimensão técnica
das fábricas impedia a libertação do trabalhador. Ela estava certa: a forma de
estruturação do trabalho na indústria é opressiva em si mesma. Lê-la foi uma
maneira de reforçar a minha convicção de que a base material da sociedade sem
classes tem como ponto de partida a automação do trabalho. Diríamos
que até o presente ela é a única técnica possível para uma forma de organização
democrática do mundo trabalho. Afinal, a economia é para o homem - e não o
inverso. Simone Weil escreveu com muita propriedade que a única autoridade
desejável deve ser aquela do "homem sobre a coisa e não do homem sobre
o homem". Superar o capitalismo sem romper com o processo capitalista
de trabalho nos parece impossível. O período em que eu trabalhei em fábrica na
Alemanha me fez compreender melhor isso por dentro, digamos assim.
Seja
como for, outra questão complexa - e que permanece em aberto - concerne a forma
de existência social da força de trabalho, isto é, o núcleo de um dadomodo
de produção. Definimos o modo de produção antigo ou escravista pelo fato de
repousar no trabalho escravo. A servidão caracterizava o modo de produção
feudal (do latim feuda, território). Nesse sentido, como
ultrapassar o regime assalariado - núcleo do modo de produção capitalista? E
convém lembrar aqui que, para Marx, sem salário não há capital. Incentivar o
trabalho por conta própria pode ser uma alternativa. E por essa noção
entendemos a colocação dos meios de produção a serviço pleno dos trabalhadores,
conforme já aludimos – mas mesmo assim é preciso lembrar que a propriedade dos
meios de produção não garante tudo. É bem verdade que o trabalhador
assalariado, desprovido de meios de produção na Idade Média, foi obrigado a
alugar a sua força de trabalho ao capitalista. Mas o camponês, proprietário da
sua terra nesse mesmo período, tinha de dar uma renda ao senhor feudal, que,
para isso, recorria à força.
E é preciso ter em mente ainda que nem todo trabalho pode ser produzido em
pequena escala, em escala reduzida. Pode ser que isso esteja começando a
ocorrer hoje em dia, mas estamos vivenciando apenas um início de possibilidade
técnica. O fato concreto é que a produção hoje se dá no plano global e se
sofistica cada vez mais. E não estamos nos referindo aqui aos métodos de gestão
apenas – métodos esses que, sabemos, ajudam a
democratizar as relações de trabalho no interior de determinadas unidades
produtivas, como é o caso da autogestão nas fábricas e do sistema de
cooperativas em vários ramos da produção e da circulação. Queremos, no fundo,
lembrar algo talvez mais complexo, ou seja, a necessidade da propagação da alta
tecnologia de uma forma tal que permita ao trabalhador escapar da lógica que
guia os grandes conglomerados capitalistas, trabalhando para si mesmo. Será que
isso é de fato viável? Em uma longa conversa que mantive com o professor
Amílcar Baiardi em Salvador, no final de 2013, ele, um estudioso das
transformações por que passa o capitalismo, revelou-se otimista em relação ao
fato de a tecnologia atual contribuir para a emancipação dos trabalhadores, em
particular para o trabalho por conta própria. Daí a importância crucial de se
estudar o impacto das técnicas sobre a sociedade. Não por acaso, André
Haudricourt se referia à tecnologia como uma das ciências humanas, a ciência
das forças produtivas. Eu chego a me perguntar, às vezes, se é possível separar
civilização industrial e capitalismo. Tendo a crer que não, na verdade, pois
foi o capitalismo que, ao gerar a unidade fabril, forjando assim a sua base
material, gerou também a própria sociedade industrial.
Em outra
conversa, mantida desta feita com o poeta Ferreira Gullar, um homem de
extraordinária lucidez e sensibilidade, ele observou algo que para mim dá o que
pensar: a iniciativa pessoal é espontânea, enquanto que o planejamento não o é. Pior: o
planejamento pode limitar as pessoas, já que é feito entre quatro
paredes, por meia dúzia de burocratas iluminados. O nosso querido Gullar queria
dizer com isso que considerava fundamental manter um equilíbrio maior entre a
iniciativa pessoal e o ambiente social circundante. É preciso ir fundo nisso,
procurando ver como a busca por melhores condições de vida é de fato inerente à
condição humana. Além do que, os trabalhadores manuais e intelectuais foram
ampliando seus espaços e conquistas no interior da ordem capitalista. Ainda
quepreservando seu caráter espoliador, é inegável que as condições de vida
dos que trabalham sob o capitalismo mudaram - e para melhor - nas áreas mais
desenvolvidas e mesmo fora delas. O empreendedorismo social representava na
virada de 2013 para 2104 cerca de 10% da economia da região mais rica do mundo,
a Europa Ocidental, abrindo novas perspectivas de trabalho fora da esfera do
lucro ou sem dele depender diretamente (ou ainda buscá-lo, forçosamente). A
classe operária organizada, hoje em declínio numérico, e o conjunto dos
trabalhadores assalariados nos países desenvolvidos têm, sim, algo a perder
agora. E a pergunta que não podemos calar: o que fazer exatamente com o
capital, em uma sociedade que pretende romper com o modo de produção
capitalista? Como ter então uma economia de escala fora dos marcos do
capitalismo? Até que ponto a tecnologia de computadores tem impactado a
economia? Como conciliar desenvolvimento e sustentabilidade? O que
Marx quis dizer quando escreveu em O capital que “lucro e
mais-valia são duas grandezas diferentes”? São perguntas difíceis de
responder, ao menos no momento atual. Mais: como expropriar, por exemplo,
centenas de milhares, senão alguns milhões de pequenos produtores
e proprietários, tanto na cidade quanto no campo? E qual o sentido de uma tal
expropriação em uma economia como a brasileira, por exemplo? Como isso não nos
parece possível, a solução talvez se encontre na abertura de zonas mistas na
economia. Vladimir Lênin percebeu essa questão dos pequenos produtores com a
acuidade que lhe era peculiar já em 1920, nas difíceis condições da Rússia
revolucionária. Daí ter criado também a NEP, a nova política econômica. Em
particular, Lênin queria saber como resolver a questão camponesa - questão essa
que Stalin encaminhou da forma mais truculenta possível, com a chamada
coletivização do campo. Talvez somente uma mudança de processo civilizatório -
ou seja, algo que vá além da sociedade industrial, em sua
versão capitalista ou socialista, digamos - é que poderá iniciar de fato o
rompimento com determinados impasses históricos vividos hoje por todos nós. A técnica
é a certidão de nascimento do capitalismo - e também a sua certidão de óbito.
Há,
igualmente, o problema do desenvolvimento das forças produtivas, do amadurecimento
das condições objetivas ou materiais para a ultrapassagem de um determinado
modo de produção. Mas penso que é preciso destacar que os limites do
desenvolvimento das forças produtivas variam de um país a outro, pois os países
não se desenvolvem todos da mesma forma, historicamente falando.
Isto é, o máximo de capitalismo em uma região pode significar o mínimo em outra
- e vice-versa.
O
estatuto da propriedade, se estatal, privada ou pública é - ao lado de questões
envolvendo as mutações no mundo do trabalho, com o alargamento indiscutível do
campo da atividade imaterial e da esfera do conhecimento - outra questão a ser
debatida em profundidade. Penso que um partido moderno de esquerda deveria
trabalhar para resgatar a função pública da propriedade. Um
partido de esquerda hoje deve trabalhar com a lógica da sociedade civil,
fugindo ao esquematismo que opõe Estado e mercado. A verdadeira regulação é
aquela da sociedade civil.
Muitas vezes, como observou Ruy Fausto em texto publicado na coletânea O
que é ser esquerda, hoje? (coordenada por Francisco Inácio de
Almeida), "o bloqueio é da teoria, muito mais do que do real".
São tantos os problemas e as dúvidas! De uma coisa apenas eu tenho certeza: a
transição será longa. Quase tão longa até quanto aquela que construiu o terreno
para a ascensão do capitalismo. Vamos ao velho Marx:
"A produção capitalista mergulha suas raízes em um terreno
preparado por uma longa série de evoluções e de revoluções econômicas. A
produtividade do trabalho, que lhe serve de ponto de partida, é obra de um
desenvolvimento histórico cujos períodos se contam não por séculos, mas por
milhares de séculos".
Mas essa transição já começa a se desenhar diante dos nossos olhos, com o
surgimento da sociedade do conhecimento. É difícil, muitas vezes, entender o
movimento da História. E o diacho é que nada existe fora dela.